Reportagem: Retrato de um Adeus

22-05-2024

Beatriz Veloso e Tiago Coimbra | 21.05.24


São dez horas, a câmara ardente da Igreja de São José das Taipas está quase tão vazia como aquele corpo pesado que repousa vestido de negro. Tem a pele da cor do gelo e um terço com ar desgastado entrelaçado nas mãos. O fato preto que veste aquele homem é a única coisa que contrasta com as paredes brancas. Por cima de si está um crucifixo dourado pendente do teto abobadado por três fios, como se estivesse a observar o finado. Além dos dois antigos bancos de madeira, cada um encostado a cada lado da capela, o crucifixo dourado é um dos únicos adornos deste lugar.

Apesar de cedo, dentro da capela, o ambiente relembra a noite. Uma discreta luz amarela ilumina esta pequena sala com a ajuda de algumas velas brancas compridas que vão derretendo à medida que o tempo passa, um retrato da inquietação do último olhar daqueles que se despedem, um momento mais perto de acontecer a cada gota de cera. A fotografia de Rui Manuel está no centro de um altar com duas destas velas de cada lado. É também aqui que está a coroa de flores exposta num cavalete de madeira escura.

Chegou a mãe do falecido, Crescença Augusta. Nas mãos leva um excêntrico ramo de flores, nos olhos uma dor indecifrável. Tem vestido um pesado sobretudo de fazenda preto com uma gola extraordinariamente grande de pelagem castanha. As suas vestes traduzem o peso emocional deste ambiente que, apesar de tudo, não deixa de ser acolhedor.

A mãe de Rui vem acompanhada de uma das suas filhas, Antónia, apelidada carinhosamente de Tona, que carrega também um ramo de flores e colocam-os em cima de uns quantos outros amontoados numa das extremidades da urna. A irmã do finado afasta-se ligeiramente e dá lugar à mãe que olha vagarosamente para este. Os soluços são incontroláveis e as lágrimas escorrem-lhe na face envelhecida. Debruça-se sobre o filho morto e, ao beijar-lhe a face, ouve-se entre os soluços um murmúrio "Já acabou meu Ruizinho".

Antónia segura as lágrimas, no entanto as suas expressões faciais gritam saudade. Vira a cabeça para cima numa tentativa ineficaz de manter a postura e volta-se ao mesmo tempo que a sua mãe, em maneira de aconchego, e coloca um dos braços nos seus ombros. Sentam-se pesadamente enquanto olham aquele corpo de pedra.

Amigos e familiares vão chegando à vez. Alguns entram na capela por breves momentos, cumprimentam toda a gente, aproximam-se de Rui e, em jeito de aconchego, tocam-lhe no peito, alguns choram, outros viram a cara, talvez lhes falte a coragem de encarar a fria realidade. Entram pela pequena porta Maria e Celeste, também irmãs de Rui, atrás vem um jovem, Rúben, filho de Maria. Celeste toma a iniciativa e segue em direção da urna à frente de Maria e do seu sobrinho, mas ao ver o irmão morto suspira e contorce a face como se a tivessem queimado. Maria suspende a respiração: "Aí o meu Manel", parece surpreendida, apesar de saber ao que vinha. O coração parece pronto a saltar-lhe do peito a qualquer instante, aproxima-se do irmão e, num afago maternal, sussurra-lhe algo ao ouvido com os olhos envinagrados e a respiração ofegante.

Rúben, que segue atrás da sua mãe e da sua tia Celeste, senta-se, juntamente com elas, no banco oposto ao de Tona e Crescença. Trocam-se olhares e o clima, antes melancólico, parece agora mais amargurado, carregado de raiva. Ao estabelecer contacto visual com as irmãs, Tona revira os olhos. Celeste e Maria soltam um riso irônico e a mãe destas expressa raiva num olhar fulminante que interrompe algo prestes a eclodir. Rúben está sentado na extremidade do banco, mesmo em frente à face do tio e o seu olhar não se desvia, analisando milimetricamente cada detalhe de Rui. "Tu não estás bem, estás todo vermelho", diz Maria, ordenando-lhe que saia. Em lágrimas, o jovem levanta-se e deixa a sala.

Chegam mais alguns primos e poucos mais familiares. O ambiente é inacreditavelmente constrangedor. A escassa família está dividida nos dois únicos bancos existentes, de um lado estão apenas Crescença e Tona que, de vez em quando, são abordadas por algum primo que se senta ao pé delas, numa tentativa de quebrar o gelo, e do outro as irmãs Maria e Celeste, alguns primos, um ou outro amigo do falecido e São, a sua mulher que veio só. Os trajes pretos da viúva tornam ainda mais evidente o ar cansado e pálido da sua pele, mas não chora, está completamente apática e o seu olhar parece vazio.

"Oh São, a tua filha não chega? Olha que já vieram avisar que a missa vai começar" diz Celeste. "Não me digas que nem ao funeral do pai vem" acrescenta Maria. "Ela não deve querer lembrar-se do pai assim, deixem-na estar", reponde São. As irmãs de Rui parecem não aceitar muito bem a desculpa e exaltam-se nas palavras "Olha que caralho, não precisava de ver, ficava na porta a marcar presença", diz Maria. "Nunca o foi ver ao hospital e vinha agora, deve estar a festejar", contra-argumenta Celeste num tom irónico. São não demonstra vontade de discutir, mas não deixa de responder "Não é bem assim, ela está com os miúdos", ao qual a resposta das duas irmãs não passa de um revirar de olhos.

Entram na sala quatro homens seguidos do padre, dão ordem para toda a gente se dirigir para a igreja, que fica do outro lado da porta do fim da câmara ardente. As pessoas levantam-se e seguem-nos, os corpos arrastam-se para os bancos árduos e frios de madeira escura. São 11 horas certas e inicia-se a missa. O padre Jardim, como é conhecido, sobe ao altar e as pessoas levantam-se e benzem-se. O padre começa com algumas orações, recita algumas palavras de apreço e de compreensão à família, mas demonstra o seu pesar à mãe e à mulher de Rui individualmente. O seu discurso ensaiado explica como a vida é passageira e que todos se irão reencontrar mais tarde, as palavras do padre parecem acalmar aqueles que soluçam incontrolavelmente.

Nos bancos da imponente Igreja das Taipas, com várias estátuas de santos e altares banhados a ouro, ouvem-se burburinhos, lamentações e cochichos, Por vezes, nas partes mais silenciosas da missa, a voz de duas mulheres fazem-se notórias perante as outras pessoas que estão na igreja: "Mas olha que não foi o que ela me disse", "Não mas estou te a dizer que lá… lá quando ela foi a casa do filho que a nora não lhe disse nadinha". Num dos bancos da frente estão duas senhoras já com uma certa idade, com vestidos pretos com renda e um colar de pérolas. Não estavam presentes na velação, mas sabem de cor todas as orações do padre e parecem conhecer o defunto.

No decorrer da missa ouve-se o ranger da porta da igreja e entra um jovem. Alguns dos presentes viram-se para descobrir de quem se trata, mas outros nem deram pela sua chegada. O jovem senta-se num dos bancos atrás de Maria e Celeste que estão focadas no padre. No célebre momento de comer a hóstia, em tom irónico, o jovem solta um murmúrio para o banco da frente: "O padre deve estar cheio de fome, já viste como ele comeu a hóstia" e dirige-se a Celeste que não controla uma gargalhada discreta: "Vê lá se te comportas pá", responde com os olhos em lágrimas e um riso triste. "Não chores mais mãe", responde o jovem acariciando o ombro de Celeste.

A missa está prestes a acabar. Mais uma vez todos se levantam e rezam juntamente com o padre e ouve-se o último "Ámen". Os quatro homens voltam para fechar o caixão e um deles pergunta: "Vamos agora para o cemitério de Agramonte, alguém precisa de transporte?". As pessoas começam então a organizar-se "Vens no meu carro, é tranquilo" "Se calhar vou deixar o meu aqui e vou com alguém". "A senhora pode vir connosco, se preferir" diz um dos homens da funerária à mãe do falecido, "Sim, sim, sim... eu vou com os senhores", diz apressadamente a Crescença num misto de inquietação e tristeza. Ao saírem da igreja, as últimas lágrimas são abafadas pelo som das conversas paralelas.

É perto do meio-dia e meia, as pessoas começam a chegar ao cemitério e, apesar de serem poucas, dividem-se em grupos. O ambiente já é mais descontraído, com menos lágrimas e poucas conversas, apenas silêncio ou palavras escassas e tímidas que lutam para saírem entre os lábios. A carrinha funerária, enfeitada com dezenas de ramos e coroas de flores por cima da urna, aguarda a chegada de todos os familiares no átrio do cemitério de Agramonte para dar início ao fúnebre cortejo. Os que chegam observam através dos vidros da carrinha o caixão e entre silêncios vão relembrando momentos já vividos e uma alma que já partiu.

Os quatro homens abrem a carrinha e retiram a urna, dois de cada lado, seguram no caixão e começam a caminhar em direção ao jazigo da família. O trajeto, apesar de curto, é extremamente desgastante emocionalmente. Os passos são curtos e vagarosos e paira no ar o receio de dizer o último adeus. O jazigo é aberto e os dois coveiros esperam a chegada da urna com todo o material atrás de si. Os seus olhares serenos carregam empatia, já certamente acostumados com esta atmosfera taciturna, com as lágrimas, com as lamentações e até mesmo com as gargalhadas.

Já é quase uma da tarde, a urna está sobre a carreta e chegou o momento do qual todos fugiam, o caixão é aberto, pela última vez. Um a um, amigos e familiares, aproximam-se de Rui. Alguns beijam-no, outros apenas observam, há quem sussurre palavras ao seu ouvido e outros, abafados pelo choro, não dizem uma palavra. Crescença é a última a ver o filho, aproxima-se da urna, acaricia a gélida face, agora com um tom arroxeado, e não esconde a dor que sente. As lágrimas não param de cair e os soluços são cada vez mais fortes: "Vou ter saudades meu filho… em breve vou ter contigo e com os teu pai, cuida de nós meu anjo". Retira do bolso um pano branco, abre-o e coloca-o cuidadosamente na face de Rui. O caixão é fechado.

Seguro pelas fitas gastas dos coveiros, o caixão vai desaparecendo à medida que desce o subsolo. À vez, os presentes pegam num pouco de terra e atiram para cima da urna, um momento que marca o fim da cerimónia, mas há quem não tenha coragem de o fazer. Com a multidão a dispersar, caem as últimas lágrimas e são dados os últimos abraços.


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